Parpadear

"¿Qué es parpadear?"

"¿Cómo?"

"Parpadear. Yo estaba leyendo una poesía de Galeano donde usaba la palavra parpadear..."

"Ah, sí, parpadear es quando cierra y abre tus ojos..."

"Piscar!"

"¿Qué?"

"Piscar. Es como lo decimos en portugués."

Parpadear, mais uma palavra nova. Tinha facilidade com línguas e um gosto por aprendê-las nos países que visitava. Comprava um livro ou dois e prestava muita atenção na pronúncia e no gestual dos nativos. Em poucos dias, a mecânica gramatical básica e um bom vocabulário já lhe davam confiança suficiente para conversar com naturalidade em uma língua que não era a sua. Cada idioma, para ele, tinha uma característica especial: o inglês para os negócios; o italiano caia sempre bem com um bom vinho e uma paixão arrebatadora, mas efêmera; para o amor mesmo, tinha que ser o francês. Sua teoria era a de que, se faltassem palavras aos verdadeiros amantes, o único diálogo possível seria em francês.

Agora aprendera o espanhol: a língua da verdade. Descobriu logo que não era possível mentir em espanhol. Primeiro surpreendeu-se quando simplesmente não conseguiu deixar de manifestar seu gosto por um vinho que haviam pedido no jantar. Como era ele o convidado, o garçom lhe serviu a prova. Achou o vinho péssimo e pediu ao garçom que trouxesse outro, um vinho local que já conhecia. Seu anfitrião, que havia recomendado o primeiro vinho, após poucos segundos de surpresa muda abriu um largo sorriso e disse aos outros que estavam à mesa: “Acá tenemos un hombre con quien podemos nosotros hacer negocios”.

-oOo-

Chovia muito na volta a Montevidéu. No rádio diziam que o aeroporto de Carrasco poderia ter vôos cancelados, mas isto não o incomodava. Estava ansioso por saber como seria sua vida dali para a frente. Quando chegasse em Porto Alegre e começasse novamente a falar sua própria língua, será que sentiria falta das máscaras que antes pareciam tornar a sua vida mais fácil? Será que havia realmente enterrado todas as suas máscaras nas dunas de Cabo Polonio?

As viagens mudam as pessoas, mas esta havia trazido à tona seu eu verdadeiro, e lhe dado uma nova compreensão do mundo.

-oOo-

Sentou-se em frente à escultura da mão na Playa Brava. As cores no céu já anunciavam o nascer do sol. Ela saía do mar naquele instante e caminhou em sua direção.

"¿Llegaste ahora?"

“Sí.”

"Qué pena tengo yo de ti, cariño..."

"¿Por qué?"

“No podrás mirar al gigante, ni escucharlo...”

“No comprendo...”

“En las noches de luna llena el gigante se va al mar, se baña y después canta a las estrellas. Entonces vuelve bajo a la tierra y sólo quedan afuera los dedos de su mano. El gigante es un tipo muy guapo, como tú...”

O sol nascia agora por traz dela, que estava emoldurada pela mão do gigante. Um trovão que se ouviu ao longe já era o prenúncio de que o tempo iria mudar. Ela começou a cantarolar uma música e o puxou para dançar um tango louco ao sol nascente, entre os dedos do gigante.

“Cierra tus ojos. No los abras hasta que te llame...”

Beijou seus olhos fechados e sentou-o na areia.

“No los abra!”

Alguns segundos depois ouviu sua voz: “Ahora!”

Abriu os olhos e não mais a viu. Um novo trovão lhe deu a nítida impressão de que o gigante movera seus dedos.

-oOo-

A música, o vinho, os dois na medida exata ou errada fizeram com que aquele luau na Playa Mansa parecesse cada vez mais estranho. Saiu do pequeno círculo de tochas no meio do qual todos sacudiam ao som da “marcha” e seguiu em direção à calle La Angostura, caminho para a Playa Brava. Antes de cruzar a avenida voltou seus olhos novamente ao luau. Da “marcha” só ouvia agora a batida grave de um bumbo, ao som do qual, sob a lua cheia e em meio às tochas, as pessoas pareciam dançar uma coreografia tribal, exorcizando seus demônios ou chamando chuva.

A lua, de tão grande, não parecia natural. Ele passou a ver todo o cenário como um palco, com as pessoas dançando ao centro: títeres manipulados por cordas amarradas aos dedos de uma mão gigante escondida na escuridão, além da cortina das estrelas.

-oOo-

Quando começou, cada vez mais, a pensar em espanhol, parecia que não só descobria verdades e sentimentos que havia comodamente esquecido (ou escondido), como também parecia que o mundo começara a revelar seus próprios segredos.

Cada passagem da sua vida aparecia-lhe, agora, mais clara, como se visse a ação das engrenagens do destino e a real intenção motivando as ações das pessoas com as quais se relacionava. Via agora que devia desculpas a alguns, que tinha assuntos a terminar com outros, e que tinha consideração ou apego demais a pessoas que sabiam usar as máscaras das quais ele gostava, mas que eram, afinal, só máscaras.

Viu também que muitos usavam as máscaras com tal naturalidade que nem mais se davam conta de que as estavam usando. Viu que ele mesmo era assim.

O sol já se punha nas dunas de Cabo Polonio enquanto ele se entretia em descobrir, uma a uma, as máscaras que já usara por obrigação, medo ou conveniência. Colheu um punhado de conchas na areia e numa espécie de ritual enterrava uma a uma, cada uma representando uma das suas máscaras.

Ao final, olhou encantado o balé das baleias no mar, e o gigante que com elas nadava.

-oOo-

O pequeno Jet Class saiu com pouco atraso, brigando com a tempestade. Ao passar do limite das nuvens, porém, o céu estava claro. Abaixo, os raios ainda tingiam de vermelho as nuvens e ao longe ele podia ver claramente o gigante brincando com seus títeres e cantando para a lua.

Restava agora saber como seria a vida depois de ter visto o gigante, enterrado suas máscaras, e dançado um tango com sua alma.



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